22 outubro, 2009

PRÊMIO NOBEL - HERTA MÜLLER – OBRA POLÍTICA - Por Jayme Bueno



PRÊMIO NOBEL - HERTA MÜLLER – OBRA POLÍTICA








Herta Müller, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura - Capa da edição alemã – Capa da tradução brasileira



1. Prêmio Nobel – o teor político

Este prêmio foi instituído em 1895, pela vontade expressa em testamento de Alfred Nobel (1833-1896), industrial sueco. A partir da nitroglicerina, Nobel patenteou a hoje conhecida dinamite. A fortuna adquirida pelo industrial com o novo produto foi destinada à criação de uma fundação e de um prêmio. Ambos, fundação e prêmio, mais tarde, em memória de seu fundador receberam o nome de Nobel.

Os prêmios concedidos oficialmente pela Fundação Nobel são apenas cinco: 1. Medicina, 2, Física, 3. Química, 4. Literatura e 5. da Paz. O de Economia, cujo nome verdadeiro é Prêmio de Ciências Econômicas Sveriges Riksbank em Memória de Alfred Nobel, não é de responsabilidade da Fundação Nobel. Foi instituído em 1968 pelo Banco Central da Suécia, instituição que concede o prêmio com dinheiro próprio e começou a ser atribuído em 1969. Só como uma homenagem, o prêmio de Economia pode ser chamado de Prêmio Nobel.

Nas cinco categorias oficiais, o Prêmio Nobel começou a ser concedido em 1901. Inicialmente, e por vontade de Nobel, deveria ser entregue a jovens cientistas que necessitassem de uma ajuda financeira para se dedicarem inteiramente às pesquisas. Mais tarde, a Fundação, por medo de críticas por poder atribuir a alguém que não viesse a se destacar na área de sua atuação, passou a concedê-lo a pesquisadores, intelectuais ou pessoas importantes com obra já publicamente reconhecida. Assim, o objetivo fundamental do prêmio foi de certo modo desvirtuado.

A atribuição do Prêmio passou também a assumir um caráter político, de acordo com as tendências do momento. No caso do Prêmio de Economia, A Fundação Humboldt, uma das mais renomadas instituições de apoio científico da Alemanha, tem concedido o Prêmio sistematicamente a economistas humboldtianos. “Os Nobel de Economia de 2009, assim como outros 41 ganhadores do prêmios Nobel, são ‘humboldtianos’". O presidente do comitê que outorga o Prêmio procura defender-se ou, ao menos, abrandar a situação, quando declarou à France Press: "as tendências políticas dos ganhadores do prêmio são muito variadas. Alguns são claramente conservadores ou de direita, enquanto que outros são obviamente de esquerda, ou pelo menos do centro do espectro político”.

Em 1905, o Prêmio da Paz foi concedido a Bertha von Suttner, não só uma pacifista, como a pessoa que inspirou ao seu amigo Alfred Nobel a criação do prêmio. Foi considerada na época a figura máxima do movimento pacifista em todo o mundo. Ela lutava intensamente contra o fanatismo nacionalista, contra o militarismo que começava a tomar corpo no início do séc. XX, mas principalmente contra o anti-semitismo.

No caso específico da concessão do Prêmio de Literatura neste ano a Herta Muller, a Academia justifica com um argumento literário e ao mesmo tempo político, quando afirma que a obra: “com a concentração da poesia e a franqueza da prosa, descreve a paisagem dos despos¬suídos”. Acrescenta mais um argumento, este somente político: O Comitê “reconheceu uma auto¬ra que se recusou a deixar o lado inumano da vida sob o comunis¬mo ser esquecido, 20 anos depois do fim do conflito Leste-Oeste”.

Lya Luft, a tradutora da versão portuguesa de Heute wär ich mir lieber nicht begegnet, declara sobre o Prêmio: “Prêmios de literatura são em geral muito estranhos”, e acrescenta: “Muitos (autores premiados) não são interessantes, nem muito bons, e a gente não sabe por que ganha”.

2. A escritora romeno-alemã Herta Müller

Herta Müller nasceu em 17 de agosto de 1953, em Nitzkydorf, um vilarejo da região de Banat, na Romênia. Aí se localizava uma grande comunidade de imigrantes alemães, conhecidos por Donauschwaben, os “suábios do Danúbio”. Na época do Nazismo, muitos romenos de ascendência alemã foram deportados para campos de trabalhos forçados na União Soviética. Dentre eles, encontrava-se a mãe de Herta Müller, que passou cinco anos na região da Ucrânia. Em livro atual, Atemschaukel (“Ritmo da respiração”), Herta Muller retrata o exílio desses romenos na URSS.

Entre os anos de 1972 e 1976, Herta Müller estudou filologia germânica e românica em Temeszwar (Timisoara), a capital da região de Banat, na Romênia. Nessa época, ingressou no Aktions-gruppeBanat, que reunia intelectuais que se opunham ao regime de Ceausescu e lutavam pela liberdade de ex¬pressão.

Depois de 1976, passou a trabalhar como tradutora em uma fábrica de máquinas. Logo, porém, é despedida por não aceitar colaborar com a policia secreta do regime romeno, a Securitate. Passa, então, a trabalhar como professora. Também por motivos políticos, foi impedida de exercer esta função.

As suas más experiências com a polícia secreta do regime comunista da Romênia vão-se tornar o tema da sua vida. Os livros de Herta Müller descrevem, de forma crítica, o tempo da ditadura de Ceausescu, contituindo uma espécie de ajuste de contas com esse passado tenebroso.

O primeiro livro de Herta Müller, Niederung (traduzido como Depressões) são contos que focalizam a vida no pequeno vilarejo onde nasceu com o cenário de repressão que se vivia ali. A obra foi censurada pelo governo comunista. Em 1984, a obra foi contrabandeada para a Alemanha, onde fez sucesso. No mesmo ano, ela lançou na Romênia Drückender Tango (traduzido como Tango opressivo). Dentro do mesmo espírito de crítica à situação política, o livro foi também proibido, e a autora passou a ser proibida de voltar a publicar. Perseguida pela ditadura romena, Herta e seu marido emigraram para a Alemanha em 1987. Dois anos depois, caiu o regime comunista de Ceausescu.

Contabilizados os prêmios que não foram atribuídos por alguma razão geralmente guerras - anos de 1918 e de1940 a 1943) e considerando as vezes que o prêmio foi atribuído a dois ganhadores em uma mesma edição (1904, 1917, 1966 e 1974), Herta Müller assumiu o número107 na lista dos ganhadores do Nobel de Literatura. Herta Müller tornou-se a 12.ª mulher a receber o Prêmio.

Dentre suas obras principais, além das duas primeiras, já referidas, destacam-se: os romances Der Fuchs war damals schon der Jäger,1992 (“A raposa era o próprio o caçador”), Herztier 1994 (“Animal do coração”) e Heute wär ich mir lieber nicht begegnet,1997 (“Hoje eu não gostaria de me encontrar”), obras que, segundo o Comitê do Prêmio: “apresentam, com detalhes primorosos, um retrato da vida sob a estagnação da ditadura”. Além desses: Der Mensch ist ein groβer Fasan auf der Welt, 1986 (“O homem é um grande faisão sobre a terra”); Barfüβiger Februar, 1987 (Fevereiro descalço); Reisende auf einem Bein, 1989 (“Viajante em uma perna”); Der Teufel sitzt im Spiegel, 1991 (“O diabo está no espelho”); Eine warme Kartoffel ist ein warmes Bett, 1992 (“Uma batata quente é uma cama quente”); Der Wächter nimmt seinen Kamm, 1993 (“O vigia pega o seu pente”); In der Falle, 1996 (Na armadilha); Im Haarknoten wohnt eine Dame, 2000 (“No nó do cabelo vive uma senhora”); Heimat ist das, was gesprochen wird, 2001 (“Pátria é o que é falado”); Der König verneigt sich und tötet, 2003 (“O rei se inclina e mata”); Die blassen Herren mit den Mokkatassen, 2005 (“Os pálidos homens com as xícaras de cafezinho”); e Atemschaukel, 2009 (“Ritmo da respiração”). Há ainda um livro de ensaios Hunger und Seide,1995 (“Fome e seda”).

As suas obras vêm sendo traduzidas para o inglês, espanhol, francês e sueco. A única obra em português é a tradução brasileira de Heute wär ich mir lieber nicht begegnet feita por Lya Luft, escritora também nascida em reduto de fala alemã, aqui no Brasil, no interior do Rio Grande do Sul. Foi publicada pela Editora Globo, em 2004. Nessa obra, a escritora retrata as dificuldades e as humilhações vividas por ela na Romênia da época comunista. Na edição brasileira, a obra recebeu o título de O Compromisso, contra a vontade da própria tradutora, que desejava algo mais próximo do título alemão, que é algo como “Hoje eu não desejava me encontrar”. Muitos traduzem, porém, como “Hoje eu não gostaria que me encontrassem”. Os que o fazem assim talvez tenham sido influenciados pela história de perseguição que a personagem vive na obra.

O título brasileiro O Compromisso teria sido escolhido pela Editora, levada pela tradução americana, em que a obra se intitula The Appointment. É interessante notar que em francês o livro recebeu o título de La Convocation. A ideia de convocação aparece já no início da narrativa: “Eu fui convocada. Quinta-feira, dez em ponto. / Sou convocada cada vez com maior freqüência...”

É interessante notar que Lya Luft não deu nenhuma importância ao livro que traduziu. Chegou a dizer que, ao traduzi-lo, a obra de Herta Müller não chamou a sua atenção.

Ao receber a notícia que Herta Müller havia vencido o Prêmio Nobel de Literatura, a escritora brasileira teve uma reação como a de muitas outras pessoas: "nunca ouvi falar". Declarou ela: "Não me chamou muito a atenção. Esqueci dele. Não foi um livro particular para mim, nem nunca mais tinha ouvido falar da autora", disse Luft por telefone ao Globo. Alegou, porém, que o motivo do esquecimento foi o fato de o livro no Brasil ter saído com título diferente do que ela havia proposto. Não lembra exatamente qual foi o título que sugeriu, só sabe que era algo mais parecido com o título original. De modo crítico, a acrescenta: “Na minha opinião, não era um livro importante. Era só um dos muitos que já traduzi. Confesso que nunca pensei, ‘puxa, isso ainda vai dar o Prêmio Nobel’.”. Desculpa-se, porém, quando afirma não ser especialista em literatura alemã. Lya Luft já traduziu os escritores alemães Hermann Hesse (este também suábio, como Herta Muller); Thomas Mann (Prêmio Nobel de Literatura, 1929); e Günter Grass (Prêmio Nobel de Literatura, 1999). Para estes autores, a tradutira não economiza elogios. Porém, sobre Herta Muller e seu livro, ela reafirma de modo cáustico: “não tenho coisas interessantes para dizer”.

3. O político na obra de Herta Müller

A obra de Herta Müller na sua grande maioria busca retratar a vida sob a ditadura socialista de Nicolae Ceausescu na Romênia, principalmente as dificuldades, humilhações e sofrimentos infligidos aos imigrantes e mesmo aos próprios romenos que se colocassem contra o governo, ou mesmo que se negassem a colaborar com a Securitate, a polícia política. Herta foi uma dessas perseguidas, como havia sido a sua mãe na região da Ucrânia pelo regime comunista de Moscou.

Os dois livros, Niederungen (1982) e Drückender Tango (1984) têm como tema a vida dos habitantes de uma pequena cidade romena de maioria alemã. A autora serviu-se, como modelo, do vilarejo Nitzkydorf, onde nasceu e passou os seus primeiros anos de vida. Aí, as pessoas tinham de conviver com a corrupção, a intolerância e a repressão sem que puedessem expressar-se contra tal situação. Em obras mais recentes como Der Fuchs war damals schon der Jäger (1992), Herztier (1994) e Heute wär ich mir lieber nicht begegnet (1997), o tema é também a vida sob a ditadura que imperou naquele país até a queda de Ceasescu. Na última dessas três obras, um oficial da polícia secreta persegue e assedia uma trabalhadora de uma fábrica de roupas (A autora foi empregada em uma fábrica, na qual foi perseguida e depois despedida por motivos políticos). A personagem com frequencia é “convocada”, para ser interrogada em datas aleatórias e sobre acusações despropositadas e completamente sem sentido. Essa fixação na convocação torna-se um dos motivos condutores da obra. Assim, ela inicia o livro e sempre volta a essa ideia.

Vários outros de seus livros falam da vida da minoria alemã, sob um regime opressivo principalmente em três aspectos: falta de liberdade, intolerância racial e cultural, e a opressão dos homens sobre as mulheres.

Ao ganhar o Prêmio Nobel de Literatura Herta Müller declarou , sobre o conteúdo de seus livros:

1. “Ich bin überrascht und kann es noch immer nicht glauben, mehr kann ich im Moment nicht dazu sagen” – (“Estou surpresa e ainda não consigo acreditar; neste momento não consigo dizer mais nada.”).

2. “Minha escrita sempre tratou de como uma ditadura surge, como uma situação pode ocorrer em que um punhado de pessoas poderosas dominam um país e o país desaparece, e só resta um Estado”.

3. “Acho que a literatura sempre emerge de coisas que fizeram dano a alguém, e há um tipo de literatura em que os autores não escolhem seu assunto, mas lidam com um que lhes foi lançado - não sou a única escritora assim”.

No caso da tradução brasileira é interessante notar que a tradutora, Lya Luft, afirma que havia esquecido que fora ela quem traduzira Heute wär ich mir lieber nicht begegnet. Disse ela: “Só fui me recordando quando entrei na internet, lendo que trata de um dos grandes fantasmas da Europa, da opressão desses países. É uma personagem bastante kafkiana, com essa coisa persecutória da pessoa que se vê envolvida em uma situação a que não sabe como chegou, sempre muito fragilizada”.

Fica patente, assim, a inclinação política da obra de Herta Müller, principalmente após a leitura de um fragmento de O Compromisso.O trecho de Heute wär ich mir lieber nicht begegnet (1997), traduzido do alemão por Lya Luft e publicado no Brasil em 2004, é o que segue:



Eu fui convocada. Quinta-feira, dez em ponto.

Sou convocada cada vez com maior freqüência: às dez em ponto na quinta, às dez em ponto no sábado, na quarta ou na segunda. Como se os anos fossem uma semana, fico imaginando que depois do fim de verão logo teremos outra vez inverno.

No trajeto até o bonde os arbustos voltam a emergir através das cercas, com suas frutinhas brancas. Como botões de madrepérola costurados embaixo, talvez até terra adentro, ou como migalhas de pão. Para cabecinhas de pássaros com bicos tortos, as frutinhas são pequenas demais, mesmo assim penso em cabeças de pássaros brancos. E isso dá vertigem. Prefiro pensar em flocos de neve no capim, mas aí a gente se perde, e pensar em giz nos dá sono.

O bonde não tem horários fixos.

Penso que é ele que chega rumorejando, se não forem os choupos com suas folhas duras. Está chegando, o bonde, e hoje me levará logo. Estou decidida a deixar o velho de chapéu de palha embarcar na minha frente. Quando cheguei ele já estava na parada, sabe lá fazia quanto tempo. Não parece frágil, mas é magro como sua sombra, meio corcunda, e abatido. Não tem bunda para encher os fundilhos, nem quadris, só os joelhos marcam a calça.

Mas se no exato momento em que a porta do bonde se abrir ele resolver escarrar no chão, eu embarco antes dele. Quase todos os assentos estão livres, ele os examina com o olhar e fica de pé.

Como é que gente tão velha não fica cansada e insiste em ficar de pé mesmo quando se pode sentar. Às vezes, ouvimos os velhos dizerem: Já vamos ficar deitados tempo suficiente no cemitério. Mas nem estão pensando em morrer, e têm razão. Não há uma ordem fixa, jovens também morrem. Sempre que não preciso ficar de pé, eu me sento. Viajar sentado é como caminhar sentado. O homem me examina, é fácil perceber isso no carro vazio. Hoje estou sem vontade de conversar, senão perguntaria o que é que ele vê em mim. Nem se apercebe que seu olhar me incomoda. Lá fora passa metade da cidade, alternando-se entre árvores e casas. Dizem que gente de idade sente mais do que pessoas jovens. Talvez ele até perceba que hoje tenho na bolsa uma toalhinha de rosto e pasta de dentes, além de uma escova. Mas nada de lenço, pois não pretendo chorar. Paul nem percebeu como eu estava com medo de que hoje Albu pudesse me levar para a cela debaixo do seu gabinete. Eu não lhe disse nada; se acontecer, ele vai saber logo. O bonde anda devagar. O chapéu de palha do velho tem uma fita manchada, provavelmente de suor ou chuva. Como sempre, Albu vai me saudar com um beijo na mão molhado de cuspe.

O major Albu pega minha mão nas pontas dos dedos e aperta tanto minhas unhas que quase solto um grito. Beija meus dedos com o lábio inferior, o superior fica livre para poder falar. Sempre beija minha mão do mesmo jeito, mas ao falar, cada vez diz uma coisa diferente:

Ora, ora, hoje seus olhos estão inflamados.

Parece que você está ficando com buço, meio cedo na sua idade.

Ora, hoje a mãozinha está gelada, espero que não sejam problemas de circulação.

Ora, ora, sua gengiva está murchando como se você fosse a sua avó.

Minha avó não envelheceu, eu digo, ela nem teve tempo de perder os dentes.

Albu deve saber o que aconteceu com os dentes de minha avó, por isso menciona o fato.

Uma mulher sempre sabe como está sua aparência a cada dia. E que um beijo na mão, primeiro, não deve doer, segundo, não deve ser molhado, terceiro, deve ser dado nas costas da mão. Homens sabem ainda melhor do que mulheres como deve ser um beijo na mão, certamente também Albu. Toda a cabeça dele cheira a Avril, um perfume francês que meu sogro, o comunista de perfumaria, também usava. Nenhuma outra pessoa que conheço compraria esse perfume. No mercado negro custa mais do que um terno numa loja. Talvez se chame Setembro, mas eu sempre reconhecerei aquele odor amargo e fumacento de folhas queimando.

Quando me sento junto da mesinha, Albu vê que esfrego os dedos na saia, não apenas para voltar a senti-los, mas também para limpar o cuspe. Ele revira seu anel de sinete e dá um sorrisinho. E daí, a gente pode limpar o cuspe, ele seca sozinho e não é venenoso. Todo mundo tem cuspe na boca. Tem gente que cospe na calçada e esfrega com o sapato porque nem mesmo na calçada sedeveria cuspir. Albu certamente não cospe na calçada, ele banca o cavalheiro refinado nesta cidade onde não o conhecem. Minhas unhas doem, mas nunca ficaram roxas do seu aperto. Elas acabam se descontraindo, como acontece quando está muito frio e a gente entra num lugar quente. O veneno é eu acreditar que meu cérebro escorrega para a frente, sobre a cara. É humilhante, não há outra palavra, sentir-se descalça no corpo inteiro. Só que, quando a melhor palavra ainda não é suficiente, não se pode dizer muita coisa com palavras.

4. Comentário sobre o texto

Do ponto de vista político, pode-se perceber por este curto trecho de O Compromisso o ambiente de perseguição e terror em que se vivia na Romênia sob o domínio da ditadura de Nicolau Ceasescu. Mesclando aspectos sociais e psicológicos, a autora nos leva a acompanhar a trajetória da personagem com suas observações sobre principalmente um dos passageiros, o velho, que surge na narrativa como uma espécie de contraponto entre a velhice e a juventude. Há em meio à paisagem humana também a paisagem da natureza, as plantas, flores, pássaros. Sempre, porém, está a ideia do regresso do inverno. A personagem, pouco a pouco, vai antecipando o que pensa que irá acontecer na inquirição a que será submetida. Para isso, ela foi convocada mais uma vez. Segue firme e com o propósito de não chorar. Fica a pensar em seu companheiro Paul, de quem se despediu antes de seguir para a entrevista com o comissário Albu.

A constante convocação e os contínuos depoimentos que a personagem tem de prestar a um comissário “pegajoso” refletem por si sós uma forma de constante tortura. Tudo isso transfere à protagonista esse eterno sentimento de asco, de humilhação, de sentir-se de corpo despido e com o cérebro como se continuamente se deslocasse para a frente. Chega a sentir a impossibilidade de dizer com a palavra, seja ela qual for, o que realmente sente.

Esses aspectos contidos no trecho inicial de O Compromisso justificam o comentário do Comitê da Academia de Estocolmo ao anunciar a concessçao do Prêmio Nobel de Literatura de 2009: “com a concentração da poesia e a franqueza da prosa, descreve a paisagem dos despos¬suídos”. “A paisagem dos despossuídos” tem sido a forma usada pela imprensa, talvez por se considerar politicamente mais correta, para o texto original da Academia, que seria: “a paisagem dos errantes e perseguidos”.

10 outubro, 2009

SOLEDAD NO RECIFE - LIVRO DE URARIANO MOTA

SOL: A MÁRTIR DO PERNAMBUCANO URARIANO MOTA
(Luiz de Almeida)*

     Minhas lentes já estavam vencidas, prejudicando assim qualquer esforço para uma rápida leitura, mesmo tendo a prática da leitura dinâmica. Mas, ao receber o livro do meu amigo Urariano Mota, Soledad no Recife, não tive outra escolha após ler os textos do Alípio Freire e a apresentação do Flávio Aguiar: Primeiro fui passar um novo café, conferir o maço de cigarros e ajeitar o abajur ao lado da escrivaninha. Enquanto a água fervia, lembranças já vagaram e divagaram pela mente: ditadura militar, 1970, Grêmio Estudantil Guilherme de Almeida e o grande jornal “Cadelão Taimes” (Não é erro de digitação, o jornal tinha esse “nome”), DOI/CODI, OBAN, Cemitério Dom Bosco no Distrito de Perus/SP, assassinato do José Maria Ferreira Araújo (ou Edson Cabral Sardinha), assassinato do jornalista Luiz Eduardo Merlino (SP), Mário Alves (RJ), o sumiço do Rubens Paiva, e... Mentira, traição e medo. Um resíduo de raiva parecia renascer dentro do peito trazendo a execrabilidade da minha paz interior.
     Nas primeiras páginas não consegui discernir o escritor do personagem. Vibrei. Ele seria ele uma testemunha ainda viva? Aos poucos essa pré dedução foi sendo desfeita pela imaginável fisionomia facial e contornos corporal de Soledad. Daniel seria apenas um coadjuvante. E fui degustando página a página, um café, outro cigarro, divagações entre uma tragada e outra, novas lembranças... Meu Deus, quatro horas da madrugada e só então percebi que havia parado de ler na página 86. O café não desceu e com as mãos trêmulas, mal consegui ascender mais um cigarro. Um trepidar incontrolável dos lábios, soluços e lágrimas. As palavras do cabo Anselmo descritas por Urariano fizeram-me estremecer de raiva. Episódios de traição maligna medraram na minha mente. Lembrei-me do episódio do “Cadelão Taimes”, onde eu e meus outros amigos fomos abandonados por um “anselmo” do grupo que se passava por amigo, justo nas ocorrências da censura e prisão do Jornal. Descobria ou relembrava, não sei até agora discernir corretamente, que aqui em Piraju também existiu e ainda vive um traidor com atitudes similares às do mentiroso, covarde e traidor cabo Anselmo, pois no momento do aperto, enquanto éramos “solicitados” para deixar a escola e chamados para depoimentos, como fui no DOI/SP, o borra-botas fugiu. E continua assim até hoje, mentiroso e traidor. Apesar de tudo: sinto pena, pois ao vê-lo pelas ruas só consigo avistar um derrotado e sem prestígio, e que ainda se presta ser boi-de-piranha no meio político daqui. É ainda daqueles que mente e acredita nas suas próprias mentiras.
     Mais calmo, retomei o livro e custou-me parar de virar e desvirar as páginas 89 até a 86. Aquelas imagens de Soledad me cativaram. O sorriso estampado numa face sincera reflete bem o eu interior daquela mulher. Sorriso igual só havia visto em 1970, na face de outra mulher, minha mãe, de nome Zita, ao ver-me entrando portão adentro retornando de São Paulo após uma noite e um dia de privação no DOI, ocasião que fui salvo pelo meu tio Luiz Alves de Almeida, um sargento da antiga polícia Metropolitana e participante ativo da OBAN, que somente em 2007 fiquei sabendo que havia falecido. A causa-morte eu não sei até hoje.
     Li até a síntese biográfica. Já era dia. Meus olhos ardiam e a língua ficara áspera de tanto café e cigarros. Não estava com sono, mas ainda em estado de raiva e êxtase misturados. Esqueci da Sol e lembrei-me do Urariano. Voltei abrir o livro no “capítulo 13”: Um livro se constrói sob dificuldades – na penúltima linha onde Urariano cravou: “(...). Bem sei que autores não choram. Autor deve ser duro e frio. (...)”. Aqui, o único ponto que discordei do Urariano, pois se “autores” não choram, não têm o direito de fazer seus leitores chorarem.
     Está marcado para o final deste mês, provavelmente no dia 25, eu ler este livro novamente. Só que agora o lerei em voz alta e com platéia. Essa platéia é especial, pois será composta de apenas duas pessoas. Um casal amigo. Moram em Botucatu/SP. Ele é cego. Estudou comigo no colégio interno quando tínhamos 12, 13 anos. Em 1971, numa manifestação estudantil, estilhaços de uma possível granada desfiguraram seu rosto e a visão. Era um líder estudantil e cursava medicina. Hoje, casado com aquela que foi sua namorada desde 1970, escutei seus berros de alegria e urros e mais urros quando falei com ele ao telefone e contei sobre o livro do Urariano que acabara de ler. E ouvia sua esposa, ao seu lado, dizendo: é a Sol assassinada em Recife, é a Sollll... Confirma o livro é sobre a Sol. Perguntaaaa. E foi o que aconteceu. Confirmei ser realmente a Sol, Soledad Barrett Viedma.
     Fiz esse preâmbulo apenas para comentar sobre o Urariano e seu livro Soledad no Recife, lançado dia 29 de julho deste ano, pela Boitempo Editorial, São Paulo. É difícil falar do Urariano como pessoa, pois não o conheço pessoalmente, apenas pela Internet. Tive a honra de receber matéria de sua autoria para postar no meu Blog Retalhos do Modernismo. Mas, gostaria de tecer alguns comentários a respeito dele, primeiro apenas o meu Dileto Amigo Urariano “virtual”:
     - Percebi seu potencial quando me enviou o texto para postar no meu Blog. Antes de ler Soledad no Recife, conheci Urariano por foto, que postarei no final. Meu filho é fotógrafo profissional. Ele me ensinou que, tirando as pessoas que são modelos profissionais, nós, os simples mortais, sempre estampamos na fisionomia eternizada numa foto, todo o nosso eu interior e os nossos sentimentos mais aguçados naquele momento do clique da máquina. E nessa foto do Amigo Urariano, percebe-se, refletido na sua fisionomia, o seu interior inquieto e recheado de honestidade e justiça – grandezas essas que estão se escasseando dia após dia. Percebi sua satisfação e alegria por ter tido a coragem de ressuscitar a Soledad que existe dentro de cada um de nós, pelo menos dentro daqueles que não são “traíras”, medrosos e mentirosos. Urariano, meu amigo “ainda” virtual, ainda terei a oportunidade de um dia poder abraçá-lo – e que nesse dia haja Sol. Considero Você, Dileto Urariano, o Ernesto Cardenal Pernambucano (guardada as devidas diferenças de credo religioso).
     O Escritor Urariano: Sinceramente? Ao ler Soledad no Recife, fica difícil definir o estilo urarianico: um Romancista? Um Contista? Não seria ele um Poeta? Você, nobre Escritor Urariano, caso tivesse escrito o Soledad como auto (O Auto de Soledad no Recife), não teria tirado o efeito proporcionado pela belíssima forma utilizada. É indecifrável a forma do Soledad. Posso apenas cravar aqui uma única e ousada opinião pessoal:
     - “Você conseguiu com Soledad no Recife adentrar-se no rol dos escritores mais nobres deste país”.
     Dileto Urariano: concluo este meu artiguete feliz por ter tido a oportunidade de ler o teu Soledad no Recife e talvez ter sido, na minha edição, o teu primeiro autógrafo do lançamento. Parabenizo a Boitempo Editorial, pois sei muito bem que muitas outras grandes editoras não suportam esse estilo de texto. Acho que ainda existem Editores que tremem quando estão diante de textos que focam os delitos e os genocídios ocorridos no Brasil durante a ditadura pós-64. Não posso deixar de elogiar também a maravilhosa apresentação do Flávio Aguiar e a belíssima síntese do Alípio Freire.
     E ao Dileto leitor deste Blog: Caso ainda não teve a oportunidade de ler Soledad no Recife, procure adquiri-lo. Faça um bom café ou chá, e comece a ler num dia que não tenha nenhum compromisso, pois você não conseguirá parar. E não tenha vergonha de sentir raiva e chorar, pois a história é ficção, mas os personagens e os fatos foram e ainda são reais, assim como muitos outros fatos similares ainda não foram devidamente explicados – e que mais nenhuma “Sol” venha tornar-se mais uma “mártir” neste nosso país.


Urariano Mota com a filha de Soledad no dia do lançamento do livro - 29 de Julho de 2009 - São Paulo.
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* (Luiz de Almeida (57): Piraju, São Paulo. Escritor e Pesquisador da Semana de Arte Moderna de 22 e Seus Personagens. Autor do livro de poemas ECOS. Moderador do Blog Retalhos do Modernimo - http://literalmeida.blogspot.com ).

04 outubro, 2009

GRACIAS A LA VIDA

"TODO POETA É UM PROFETA"

"O POETA FINGE NÃO CONHECER O QUE JÁ SABE"

CESARE PAVESE











Obrigado à vida que me tem dado tanto

deu-me dois olhos que, quando os abro

perfeitamente distingo o preto do branco

e no alto céu, o seu fundo estrelado

e nas multidões, o homem que eu amo.

.

Obrigado à vida que me tem dado tanto

deu-me o ouvido que, em toda a amplitude,

grava, noite e dia, grilos e canários

martelos, turbinas, latidos, chuviscos

e a voz tão terna do meu bem amado.

.

Obrigado à vida que me tem dado tanto

deu-me o som e o abecedário

e, com ele, as palavras com que penso e falo

mãe, amigo, irmão e luz iluminando

a rota da alma de quem estou amando.

.

Obrigado à vida que me tem dado tanto

deu-me a marcha dos meus pés cansados

com eles andei por cidades e charcos,

praias e desertos, montanhas e planícies

pela tua casa, tua rua e teu pátio.

.

Obrigado à vida que me tem dado tanto

deu-me o coração que todo se agita

quando vejo o fruto do cérebro humano,

quando vejo o bem tão longe do mal,

quando vejo no fundo do teus olhos claros.

.

Obrigado à vida que me tem dado tanto

deu-me o riso e deu-me o pranto

assim eu distingo a felicidade da tristeza,

os dois materiais de que é feito o meu canto

e o canto de todos, que é o meu próprio canto

.

Obrigado à Vida

Obrigado à Vida

Obrigado à Vida

Obrigado à Vida

.

de Violeta Parra



















*****






A cantora Mercedes Sosa faleceu aos 74 anos, neste domingo (4), em Buenos Aires, na Argentina. Ela estava internada desde 18 de setembro por causa de uma disfunção hepática. Porém, o quadro foi agravado com complicações cardiorrespiratórios.
Segundo o hospital Sanatorio de la Trinidad, onde Mercedes esteve internada, a intérprete sofria "disfunção renal progressiva". Em março deste ano ela já havia sido internada apresentando desidratação e pneumonia.
Mercedes é considerada uma das maiores cantoras argentinas. Este ano ela foi indicada à três Grammy Latino, pelo álbum "Cantora".
Biografia
Mercedes Sosa nasceu em San Miguel, na Argentina, em 1935. De origem humilde, a cantora cresceu admirando artistas populares e as canções folclóricas do país. Em 1960 já se destacava pela sua voz potente e deu início ao "Movimento Del Nuevo Cancionero", considerado precursor dos protestos através da música.
Seu talento chamou atenção da elite argentina, que não estava acostumado com o seu repertório. Ao longo de sua carreira chegou a gravar mais de 40 discos.
Em 1979, devido seu engajamento político, a cantora foi exilada de sua terra natal e teve que passar uma temporada em Paris, na França, e em 1980 mudou-se para Madri, na Espanha. Mercedes até poderia entrar e sair da Argentina livremente, mas foi proibida de cantar.
Três anos depois, "La Negra", como era chamada pelos fãs, pôde voltar ao seu país de origem para se apresentar. Na época, ela também veio ao Brasil divulgar o disco "Gente Humilde".
Com o fim da ditadura argentina, em 1984, Mercedes Sosa comemorou o retorno da democracia com o espetáculo "Corazón Americano", ao lado do brasileiro Milton Nascimento e León Gieco. Em 1988, ela gravou o disco "Amigos Mios", com participação de Pablo Milanés, Teresa Parodi, Cherly García, Raimundo Fagner, e outros.
No ano seguinte, Mercedes recebeu a medalha de Comendadora das Artes e das Letras do embaixador da França na Argentina, Pierre Décamps. Em 1992, recebeu homenagem de cidadã ilustre de Buenos Aires.
Em 2000, a cantora gravou a canção "Misa Criolla" que lhe rendeu um Grammy Latino.
O sucesso continuou e Mercedes seguiu com seus show até 2003, quando teve interromper a carreira por um problema cardíaco.
Dois anos depois, a estrela voltou aos palcos e conseguiu três indicações ao Grammy Latino em 2009, pelo álbum "Cantora".


FONTE: MSN ENTRETENIMENTO