PRÊMIO NOBEL - HERTA MÜLLER – OBRA POLÍTICA
Herta Müller, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura - Capa da edição alemã – Capa da tradução brasileira
1. Prêmio Nobel – o teor político
Este prêmio foi instituído em 1895, pela vontade expressa em testamento de Alfred Nobel (1833-1896), industrial sueco. A partir da nitroglicerina, Nobel patenteou a hoje conhecida dinamite. A fortuna adquirida pelo industrial com o novo produto foi destinada à criação de uma fundação e de um prêmio. Ambos, fundação e prêmio, mais tarde, em memória de seu fundador receberam o nome de Nobel.
Os prêmios concedidos oficialmente pela Fundação Nobel são apenas cinco: 1. Medicina, 2, Física, 3. Química, 4. Literatura e 5. da Paz. O de Economia, cujo nome verdadeiro é Prêmio de Ciências Econômicas Sveriges Riksbank em Memória de Alfred Nobel, não é de responsabilidade da Fundação Nobel. Foi instituído em 1968 pelo Banco Central da Suécia, instituição que concede o prêmio com dinheiro próprio e começou a ser atribuído em 1969. Só como uma homenagem, o prêmio de Economia pode ser chamado de Prêmio Nobel.
Nas cinco categorias oficiais, o Prêmio Nobel começou a ser concedido em 1901. Inicialmente, e por vontade de Nobel, deveria ser entregue a jovens cientistas que necessitassem de uma ajuda financeira para se dedicarem inteiramente às pesquisas. Mais tarde, a Fundação, por medo de críticas por poder atribuir a alguém que não viesse a se destacar na área de sua atuação, passou a concedê-lo a pesquisadores, intelectuais ou pessoas importantes com obra já publicamente reconhecida. Assim, o objetivo fundamental do prêmio foi de certo modo desvirtuado.
A atribuição do Prêmio passou também a assumir um caráter político, de acordo com as tendências do momento. No caso do Prêmio de Economia, A Fundação Humboldt, uma das mais renomadas instituições de apoio científico da Alemanha, tem concedido o Prêmio sistematicamente a economistas humboldtianos. “Os Nobel de Economia de 2009, assim como outros 41 ganhadores do prêmios Nobel, são ‘humboldtianos’". O presidente do comitê que outorga o Prêmio procura defender-se ou, ao menos, abrandar a situação, quando declarou à France Press: "as tendências políticas dos ganhadores do prêmio são muito variadas. Alguns são claramente conservadores ou de direita, enquanto que outros são obviamente de esquerda, ou pelo menos do centro do espectro político”.
Em 1905, o Prêmio da Paz foi concedido a Bertha von Suttner, não só uma pacifista, como a pessoa que inspirou ao seu amigo Alfred Nobel a criação do prêmio. Foi considerada na época a figura máxima do movimento pacifista em todo o mundo. Ela lutava intensamente contra o fanatismo nacionalista, contra o militarismo que começava a tomar corpo no início do séc. XX, mas principalmente contra o anti-semitismo.
No caso específico da concessão do Prêmio de Literatura neste ano a Herta Muller, a Academia justifica com um argumento literário e ao mesmo tempo político, quando afirma que a obra: “com a concentração da poesia e a franqueza da prosa, descreve a paisagem dos despos¬suídos”. Acrescenta mais um argumento, este somente político: O Comitê “reconheceu uma auto¬ra que se recusou a deixar o lado inumano da vida sob o comunis¬mo ser esquecido, 20 anos depois do fim do conflito Leste-Oeste”.
Lya Luft, a tradutora da versão portuguesa de Heute wär ich mir lieber nicht begegnet, declara sobre o Prêmio: “Prêmios de literatura são em geral muito estranhos”, e acrescenta: “Muitos (autores premiados) não são interessantes, nem muito bons, e a gente não sabe por que ganha”.
2. A escritora romeno-alemã Herta Müller
Herta Müller nasceu em 17 de agosto de 1953, em Nitzkydorf, um vilarejo da região de Banat, na Romênia. Aí se localizava uma grande comunidade de imigrantes alemães, conhecidos por Donauschwaben, os “suábios do Danúbio”. Na época do Nazismo, muitos romenos de ascendência alemã foram deportados para campos de trabalhos forçados na União Soviética. Dentre eles, encontrava-se a mãe de Herta Müller, que passou cinco anos na região da Ucrânia. Em livro atual, Atemschaukel (“Ritmo da respiração”), Herta Muller retrata o exílio desses romenos na URSS.
Entre os anos de 1972 e 1976, Herta Müller estudou filologia germânica e românica em Temeszwar (Timisoara), a capital da região de Banat, na Romênia. Nessa época, ingressou no Aktions-gruppeBanat, que reunia intelectuais que se opunham ao regime de Ceausescu e lutavam pela liberdade de ex¬pressão.
Depois de 1976, passou a trabalhar como tradutora em uma fábrica de máquinas. Logo, porém, é despedida por não aceitar colaborar com a policia secreta do regime romeno, a Securitate. Passa, então, a trabalhar como professora. Também por motivos políticos, foi impedida de exercer esta função.
As suas más experiências com a polícia secreta do regime comunista da Romênia vão-se tornar o tema da sua vida. Os livros de Herta Müller descrevem, de forma crítica, o tempo da ditadura de Ceausescu, contituindo uma espécie de ajuste de contas com esse passado tenebroso.
O primeiro livro de Herta Müller, Niederung (traduzido como Depressões) são contos que focalizam a vida no pequeno vilarejo onde nasceu com o cenário de repressão que se vivia ali. A obra foi censurada pelo governo comunista. Em 1984, a obra foi contrabandeada para a Alemanha, onde fez sucesso. No mesmo ano, ela lançou na Romênia Drückender Tango (traduzido como Tango opressivo). Dentro do mesmo espírito de crítica à situação política, o livro foi também proibido, e a autora passou a ser proibida de voltar a publicar. Perseguida pela ditadura romena, Herta e seu marido emigraram para a Alemanha em 1987. Dois anos depois, caiu o regime comunista de Ceausescu.
Contabilizados os prêmios que não foram atribuídos por alguma razão geralmente guerras - anos de 1918 e de1940 a 1943) e considerando as vezes que o prêmio foi atribuído a dois ganhadores em uma mesma edição (1904, 1917, 1966 e 1974), Herta Müller assumiu o número107 na lista dos ganhadores do Nobel de Literatura. Herta Müller tornou-se a 12.ª mulher a receber o Prêmio.
Dentre suas obras principais, além das duas primeiras, já referidas, destacam-se: os romances Der Fuchs war damals schon der Jäger,1992 (“A raposa era o próprio o caçador”), Herztier 1994 (“Animal do coração”) e Heute wär ich mir lieber nicht begegnet,1997 (“Hoje eu não gostaria de me encontrar”), obras que, segundo o Comitê do Prêmio: “apresentam, com detalhes primorosos, um retrato da vida sob a estagnação da ditadura”. Além desses: Der Mensch ist ein groβer Fasan auf der Welt, 1986 (“O homem é um grande faisão sobre a terra”); Barfüβiger Februar, 1987 (Fevereiro descalço); Reisende auf einem Bein, 1989 (“Viajante em uma perna”); Der Teufel sitzt im Spiegel, 1991 (“O diabo está no espelho”); Eine warme Kartoffel ist ein warmes Bett, 1992 (“Uma batata quente é uma cama quente”); Der Wächter nimmt seinen Kamm, 1993 (“O vigia pega o seu pente”); In der Falle, 1996 (Na armadilha); Im Haarknoten wohnt eine Dame, 2000 (“No nó do cabelo vive uma senhora”); Heimat ist das, was gesprochen wird, 2001 (“Pátria é o que é falado”); Der König verneigt sich und tötet, 2003 (“O rei se inclina e mata”); Die blassen Herren mit den Mokkatassen, 2005 (“Os pálidos homens com as xícaras de cafezinho”); e Atemschaukel, 2009 (“Ritmo da respiração”). Há ainda um livro de ensaios Hunger und Seide,1995 (“Fome e seda”).
As suas obras vêm sendo traduzidas para o inglês, espanhol, francês e sueco. A única obra em português é a tradução brasileira de Heute wär ich mir lieber nicht begegnet feita por Lya Luft, escritora também nascida em reduto de fala alemã, aqui no Brasil, no interior do Rio Grande do Sul. Foi publicada pela Editora Globo, em 2004. Nessa obra, a escritora retrata as dificuldades e as humilhações vividas por ela na Romênia da época comunista. Na edição brasileira, a obra recebeu o título de O Compromisso, contra a vontade da própria tradutora, que desejava algo mais próximo do título alemão, que é algo como “Hoje eu não desejava me encontrar”. Muitos traduzem, porém, como “Hoje eu não gostaria que me encontrassem”. Os que o fazem assim talvez tenham sido influenciados pela história de perseguição que a personagem vive na obra.
O título brasileiro O Compromisso teria sido escolhido pela Editora, levada pela tradução americana, em que a obra se intitula The Appointment. É interessante notar que em francês o livro recebeu o título de La Convocation. A ideia de convocação aparece já no início da narrativa: “Eu fui convocada. Quinta-feira, dez em ponto. / Sou convocada cada vez com maior freqüência...”
É interessante notar que Lya Luft não deu nenhuma importância ao livro que traduziu. Chegou a dizer que, ao traduzi-lo, a obra de Herta Müller não chamou a sua atenção.
Ao receber a notícia que Herta Müller havia vencido o Prêmio Nobel de Literatura, a escritora brasileira teve uma reação como a de muitas outras pessoas: "nunca ouvi falar". Declarou ela: "Não me chamou muito a atenção. Esqueci dele. Não foi um livro particular para mim, nem nunca mais tinha ouvido falar da autora", disse Luft por telefone ao Globo. Alegou, porém, que o motivo do esquecimento foi o fato de o livro no Brasil ter saído com título diferente do que ela havia proposto. Não lembra exatamente qual foi o título que sugeriu, só sabe que era algo mais parecido com o título original. De modo crítico, a acrescenta: “Na minha opinião, não era um livro importante. Era só um dos muitos que já traduzi. Confesso que nunca pensei, ‘puxa, isso ainda vai dar o Prêmio Nobel’.”. Desculpa-se, porém, quando afirma não ser especialista em literatura alemã. Lya Luft já traduziu os escritores alemães Hermann Hesse (este também suábio, como Herta Muller); Thomas Mann (Prêmio Nobel de Literatura, 1929); e Günter Grass (Prêmio Nobel de Literatura, 1999). Para estes autores, a tradutira não economiza elogios. Porém, sobre Herta Muller e seu livro, ela reafirma de modo cáustico: “não tenho coisas interessantes para dizer”.
3. O político na obra de Herta Müller
A obra de Herta Müller na sua grande maioria busca retratar a vida sob a ditadura socialista de Nicolae Ceausescu na Romênia, principalmente as dificuldades, humilhações e sofrimentos infligidos aos imigrantes e mesmo aos próprios romenos que se colocassem contra o governo, ou mesmo que se negassem a colaborar com a Securitate, a polícia política. Herta foi uma dessas perseguidas, como havia sido a sua mãe na região da Ucrânia pelo regime comunista de Moscou.
Os dois livros, Niederungen (1982) e Drückender Tango (1984) têm como tema a vida dos habitantes de uma pequena cidade romena de maioria alemã. A autora serviu-se, como modelo, do vilarejo Nitzkydorf, onde nasceu e passou os seus primeiros anos de vida. Aí, as pessoas tinham de conviver com a corrupção, a intolerância e a repressão sem que puedessem expressar-se contra tal situação. Em obras mais recentes como Der Fuchs war damals schon der Jäger (1992), Herztier (1994) e Heute wär ich mir lieber nicht begegnet (1997), o tema é também a vida sob a ditadura que imperou naquele país até a queda de Ceasescu. Na última dessas três obras, um oficial da polícia secreta persegue e assedia uma trabalhadora de uma fábrica de roupas (A autora foi empregada em uma fábrica, na qual foi perseguida e depois despedida por motivos políticos). A personagem com frequencia é “convocada”, para ser interrogada em datas aleatórias e sobre acusações despropositadas e completamente sem sentido. Essa fixação na convocação torna-se um dos motivos condutores da obra. Assim, ela inicia o livro e sempre volta a essa ideia.
Vários outros de seus livros falam da vida da minoria alemã, sob um regime opressivo principalmente em três aspectos: falta de liberdade, intolerância racial e cultural, e a opressão dos homens sobre as mulheres.
Ao ganhar o Prêmio Nobel de Literatura Herta Müller declarou , sobre o conteúdo de seus livros:
1. “Ich bin überrascht und kann es noch immer nicht glauben, mehr kann ich im Moment nicht dazu sagen” – (“Estou surpresa e ainda não consigo acreditar; neste momento não consigo dizer mais nada.”).
2. “Minha escrita sempre tratou de como uma ditadura surge, como uma situação pode ocorrer em que um punhado de pessoas poderosas dominam um país e o país desaparece, e só resta um Estado”.
3. “Acho que a literatura sempre emerge de coisas que fizeram dano a alguém, e há um tipo de literatura em que os autores não escolhem seu assunto, mas lidam com um que lhes foi lançado - não sou a única escritora assim”.
No caso da tradução brasileira é interessante notar que a tradutora, Lya Luft, afirma que havia esquecido que fora ela quem traduzira Heute wär ich mir lieber nicht begegnet. Disse ela: “Só fui me recordando quando entrei na internet, lendo que trata de um dos grandes fantasmas da Europa, da opressão desses países. É uma personagem bastante kafkiana, com essa coisa persecutória da pessoa que se vê envolvida em uma situação a que não sabe como chegou, sempre muito fragilizada”.
Fica patente, assim, a inclinação política da obra de Herta Müller, principalmente após a leitura de um fragmento de O Compromisso.O trecho de Heute wär ich mir lieber nicht begegnet (1997), traduzido do alemão por Lya Luft e publicado no Brasil em 2004, é o que segue:
Eu fui convocada. Quinta-feira, dez em ponto.
Sou convocada cada vez com maior freqüência: às dez em ponto na quinta, às dez em ponto no sábado, na quarta ou na segunda. Como se os anos fossem uma semana, fico imaginando que depois do fim de verão logo teremos outra vez inverno.
No trajeto até o bonde os arbustos voltam a emergir através das cercas, com suas frutinhas brancas. Como botões de madrepérola costurados embaixo, talvez até terra adentro, ou como migalhas de pão. Para cabecinhas de pássaros com bicos tortos, as frutinhas são pequenas demais, mesmo assim penso em cabeças de pássaros brancos. E isso dá vertigem. Prefiro pensar em flocos de neve no capim, mas aí a gente se perde, e pensar em giz nos dá sono.
O bonde não tem horários fixos.
Penso que é ele que chega rumorejando, se não forem os choupos com suas folhas duras. Está chegando, o bonde, e hoje me levará logo. Estou decidida a deixar o velho de chapéu de palha embarcar na minha frente. Quando cheguei ele já estava na parada, sabe lá fazia quanto tempo. Não parece frágil, mas é magro como sua sombra, meio corcunda, e abatido. Não tem bunda para encher os fundilhos, nem quadris, só os joelhos marcam a calça.
Mas se no exato momento em que a porta do bonde se abrir ele resolver escarrar no chão, eu embarco antes dele. Quase todos os assentos estão livres, ele os examina com o olhar e fica de pé.
Como é que gente tão velha não fica cansada e insiste em ficar de pé mesmo quando se pode sentar. Às vezes, ouvimos os velhos dizerem: Já vamos ficar deitados tempo suficiente no cemitério. Mas nem estão pensando em morrer, e têm razão. Não há uma ordem fixa, jovens também morrem. Sempre que não preciso ficar de pé, eu me sento. Viajar sentado é como caminhar sentado. O homem me examina, é fácil perceber isso no carro vazio. Hoje estou sem vontade de conversar, senão perguntaria o que é que ele vê em mim. Nem se apercebe que seu olhar me incomoda. Lá fora passa metade da cidade, alternando-se entre árvores e casas. Dizem que gente de idade sente mais do que pessoas jovens. Talvez ele até perceba que hoje tenho na bolsa uma toalhinha de rosto e pasta de dentes, além de uma escova. Mas nada de lenço, pois não pretendo chorar. Paul nem percebeu como eu estava com medo de que hoje Albu pudesse me levar para a cela debaixo do seu gabinete. Eu não lhe disse nada; se acontecer, ele vai saber logo. O bonde anda devagar. O chapéu de palha do velho tem uma fita manchada, provavelmente de suor ou chuva. Como sempre, Albu vai me saudar com um beijo na mão molhado de cuspe.
O major Albu pega minha mão nas pontas dos dedos e aperta tanto minhas unhas que quase solto um grito. Beija meus dedos com o lábio inferior, o superior fica livre para poder falar. Sempre beija minha mão do mesmo jeito, mas ao falar, cada vez diz uma coisa diferente:
Ora, ora, hoje seus olhos estão inflamados.
Parece que você está ficando com buço, meio cedo na sua idade.
Ora, hoje a mãozinha está gelada, espero que não sejam problemas de circulação.
Ora, ora, sua gengiva está murchando como se você fosse a sua avó.
Minha avó não envelheceu, eu digo, ela nem teve tempo de perder os dentes.
Albu deve saber o que aconteceu com os dentes de minha avó, por isso menciona o fato.
Uma mulher sempre sabe como está sua aparência a cada dia. E que um beijo na mão, primeiro, não deve doer, segundo, não deve ser molhado, terceiro, deve ser dado nas costas da mão. Homens sabem ainda melhor do que mulheres como deve ser um beijo na mão, certamente também Albu. Toda a cabeça dele cheira a Avril, um perfume francês que meu sogro, o comunista de perfumaria, também usava. Nenhuma outra pessoa que conheço compraria esse perfume. No mercado negro custa mais do que um terno numa loja. Talvez se chame Setembro, mas eu sempre reconhecerei aquele odor amargo e fumacento de folhas queimando.
Quando me sento junto da mesinha, Albu vê que esfrego os dedos na saia, não apenas para voltar a senti-los, mas também para limpar o cuspe. Ele revira seu anel de sinete e dá um sorrisinho. E daí, a gente pode limpar o cuspe, ele seca sozinho e não é venenoso. Todo mundo tem cuspe na boca. Tem gente que cospe na calçada e esfrega com o sapato porque nem mesmo na calçada sedeveria cuspir. Albu certamente não cospe na calçada, ele banca o cavalheiro refinado nesta cidade onde não o conhecem. Minhas unhas doem, mas nunca ficaram roxas do seu aperto. Elas acabam se descontraindo, como acontece quando está muito frio e a gente entra num lugar quente. O veneno é eu acreditar que meu cérebro escorrega para a frente, sobre a cara. É humilhante, não há outra palavra, sentir-se descalça no corpo inteiro. Só que, quando a melhor palavra ainda não é suficiente, não se pode dizer muita coisa com palavras.
4. Comentário sobre o texto
Do ponto de vista político, pode-se perceber por este curto trecho de O Compromisso o ambiente de perseguição e terror em que se vivia na Romênia sob o domínio da ditadura de Nicolau Ceasescu. Mesclando aspectos sociais e psicológicos, a autora nos leva a acompanhar a trajetória da personagem com suas observações sobre principalmente um dos passageiros, o velho, que surge na narrativa como uma espécie de contraponto entre a velhice e a juventude. Há em meio à paisagem humana também a paisagem da natureza, as plantas, flores, pássaros. Sempre, porém, está a ideia do regresso do inverno. A personagem, pouco a pouco, vai antecipando o que pensa que irá acontecer na inquirição a que será submetida. Para isso, ela foi convocada mais uma vez. Segue firme e com o propósito de não chorar. Fica a pensar em seu companheiro Paul, de quem se despediu antes de seguir para a entrevista com o comissário Albu.
A constante convocação e os contínuos depoimentos que a personagem tem de prestar a um comissário “pegajoso” refletem por si sós uma forma de constante tortura. Tudo isso transfere à protagonista esse eterno sentimento de asco, de humilhação, de sentir-se de corpo despido e com o cérebro como se continuamente se deslocasse para a frente. Chega a sentir a impossibilidade de dizer com a palavra, seja ela qual for, o que realmente sente.
Esses aspectos contidos no trecho inicial de O Compromisso justificam o comentário do Comitê da Academia de Estocolmo ao anunciar a concessçao do Prêmio Nobel de Literatura de 2009: “com a concentração da poesia e a franqueza da prosa, descreve a paisagem dos despos¬suídos”. “A paisagem dos despossuídos” tem sido a forma usada pela imprensa, talvez por se considerar politicamente mais correta, para o texto original da Academia, que seria: “a paisagem dos errantes e perseguidos”.
6 comentários:
Olá, prof Jayme!
Que postagem interessante! Eu não conhecia a origem do Prêmio Nobel.
Pena que os ideais primeiros foram se desvirtuando por temores acerca de críticas e por questões políticas. Acho uma falta de respeito à memória de quem concebe um projeto, fatos assim. Mas é o que comumente acontece...
"[...]por vontade de Nobel, deveria ser entregue a jovens cientistas que necessitassem de uma ajuda financeira para se dedicarem inteiramente às pesquisas[...]"
Acerca declaração de Lya Luft, sobre o Prêmio:
“Prêmios de literatura são em geral muito estranhos”, e acrescenta: “Muitos (autores premiados) não são interessantes, nem muito bons, e a gente não sabe por que ganha”.
Eu concordo com ela. Entretanto, pelo que li sobre a obra de Herta Müller, acho que foi merecido, pois me parece bastante interessante a temática - interessante e atualíssima.
Nenhuma forma de tirania, racismo e injustiça deve ser esquecida ou desconsiderada - ainda que ocorra ou tenha ocorrido num vilarejo da Europa, Américas, Continente Africano, Asiático, ilhas, enfim... Dor é dor.
Mais um livro que preciso ler. O poético da dor é sempre um convite
especial a minha leitura. É pura arte.
Grande abraço, prof. Jayme.
Muito obrigada por mais uma preciosa colaboração.
Taninha
Professor Jayme,
A Literatura Realista tem o que nos ensinar. Aprende-se muito com Flaubert, Dostoievsky, Thomas Mann e, certamente, com Herta Müller. Eu, particularmente, prefiro uma literatura onde o confronto da realidade (e sua apresentação) não se dissociam do onirismo, tingindo a narrativa com cores mais subjetivas. Pra mim, literatura, antes que painel social, é "digital do artista". Mas isso é uma questão de gosto.
Méritos para Herta Müller.
Quanto à atitude de Lya Luft, além da franqueza, achei-a um tanto descuidada. E até "blasé". Esquecer-se de um livro que traduziu e que, independente do "brilho" (ou ausência de) não é nenhum campeão da mediocridade, é um tanto demais. E devemos considerar que a autora (ou autor) ganha o prêmio pelo conjunto da obra, e que a amostra que temos disponível é muito pequena para fazer justiça ao montante de empenho artístico-narrativo-biográfico-social de Herta. Nem Lya Luft, nem nós, podemos avaliar a contento a amplitude de seu trabalho. Ainda que ela reitere o mesmo tema "n" vezes, pode fazê-lo com insuspeitas sutilezas e maestria. Além do viés político, creio, minimamente, na "carpintaria literária" de Herta.
Pensando na ênfase (ou "sobrevalência") que se possa dar a este tipo de literatura, pensei no inegável fôlego de análise social, feita com competência, pelo escritor britânico (de origem indiana, e nascido em Trinidad e Tobago -cosmopolitismo mais do que conveniente aos critérios políticos de premiação...) Vidiadhar Surajprasad Naipaul, prêmio Nobel de Literatura de 2001. Sua temática social e seu painel dos conflitos hindus-muçulmanos (além da minuciosa exposição do ideário muçulmano fundamentalista) também pode ser apreendida mais pelo ângulo político do que literário. Mas para se escrever tanto (e tão bem) sobre tais questões sociais, deve-se ser, além de engajado (de um ou outro modo...), "também" bom escritor. De V. S. Naipaul temos mais de meia dúzia de livros (volumosos, alguns, por sinal...) traduzidos para o português. Aguardemos outras traduções de Herta (e por pessoas talvez mais entusiastas do que Lya Luft, malgrado sua competência no ofício; há que se ter "ardor" pelo trabalho, e não apenas desempenhá-lo burocraticamente bem...). No que diz respeito a certa literatura de engajamento político que destaca mais o onirismo (ou "digital onírica") do autor, sugiro a obra do moçambicano Mia Couto. Inclusive, pelo atrativo adicional de ter sido escrita em nossa própria língua. Com "sotaque", claro.
Muito bom o seu texto, professor.
Abraços,
Marcelo.
professor Jayme,
Gostei imensamente do artigo, onde é traçado um panorama do prêmio Nobel e da escritora Herta Muller.
Eu, confesso, não conhecia a escritora e essa matéria foi decisiva para que eu tivesse alguma informação sobre ela.
Parabéns.
Taninha,
Estive uns dias fora do ar por pequena viagem de motivação familiar, batizado de mais uma netinha em cidade catarinense. Agora, de volta, percebi que o texto foi postado já há alguns dias. Obrigado!
As academias e outras instituições vão-se transformando segundo seus novos dirigentes e têm esse defeito de moldarem às suas feições inclusive a criação de outros. De fato, é uma pena. Passou-se a valorizar a credibilidade à custa de quem já é famoso.
Também considero merecida a concessão do prêmio à escritora romeno-alemã. Acontece que havia uma torcida muito grande pelo israelense Amós Oz e também pelo libanês Amin Maalouf (ambos no âmbito dos problemas políticos árabe-israelenses). Havia também preferência pelo holandês Cees Nooteboom. Em votação paralela, surgiam nomes como os dos americanos Philip Roth, Thomas Pynchon e Joyce Carol Oates; dos latino-americanos Vargas Llosa e Carlos Fuentes. A lista de candidatos era grande nas bolsas de apostas.
Enfim, acabou vencendo uma candidata menos conhecida. Politicamente, o caso das ditaduras socialistas prevaleceu. Creio, porém, que não só por isso, porque a obra de Herta Müller possui também qualidades literárias.
Um grande abraço, Taninha.
Jayme
Prezado KA,
Obrigado pelo comentário. É gratificante saber que a postagem vem tendo o mérito de informar e de dar oportunidade para o debate de obras, autores, aspectos da literatura.
Agradeço muito.
Um abraço,
Jayme
Prezado Marcelo,
Cá estamos novamente. Desta vez sobre Prêmio Nobel de Literatura.
Concordo em uma representação da realidade não meramente mimética, mas também enriquecida pelo poético, pelo aprofundamento psicológico das personagens, pelo onírico e mesmo por alguma coisa experimental, desde que não venha a se tornar experimental apenas pela aparência externa, recurso já desgastado.
Penso que na obra que li, a tradução brasileira, há um pouco de tudo. Várias passagens líricas, quase sempre que se refere às estações do ano (algo muito marcante na Europa); inverno com a poesia da neve em flocos brancos; primavera com as flores e seus perfumes; verão com pessoas mais bem dispostas, um pouco mais alegres, ou, ao menos, menos tristes, pelas ruas. Há claro, como fundo permanente uma paisagem bastante deprimente, céu cinzento, espaços sombrios, ruas escuras, fábricas opressivas, bondes lotados já pela madrugada, velhinhas meio loucas pelas ruas, o ambiente de contínua opressão e uma rotina massacrante, em um país que nada acontece de diferente.
Quanto à posição de Lya Luft, segundo meu neto, estudante de Engenharia Eletrônica e não muito dado à literatura, em tom um bastante jocoso, é um tanto de inveja por parte tradutora. Afinal, é de fato no mínimo estranho esse modo de enfocar a obra que ela própria traduziu. Talvez não a tenha considerado como a de outros autores alemães que traduziu, mas dois deles são também Prêmio Nobel. E questão de gosto não deve ser critério de avaliação de uma obra e ainda mais de um conjunto de obras, como o colega menciona no comentário postado.
Quanto à obra de Mia Couto, hoje é uma das mais estudadas nas universidades. Não sei se essa contínua exposição de uma obra não prejudique no sentido da concessão de Prêmio Nobel. Não foi, porém, o caso de Saramago, embora este com uma militância muito forte no Partido Comunista internacional.
Quanto à estruturação de O Compromisso, penso que há de tudo um pouco. O texto não se divide em capítulos, mas a passagem de um núcleo para outro é feito por espaçamento maior. Porém, sem cortes bruscos que dificultem o entendimento para o leitor comum. É uma narrativa que se pode chamar de bem comportada.
Quanto às personagens, elas não são muitas. Aparecem velhos devassos, jovens sexy, mulheres altamente erotizadas, tudo numa mistura que leva a cenas sugeridas de sexo em casas, entre parentes por afinidade, nas fábricas, de modo consentido ou forçado.
Sobre o ambiente, além do que comentei sobre os espaços urbanos, há o lado do psicológico: contínuas ações que envolvem as personagens, que torturam, que atemorizam, que fazem enlouquecer. Mesmo assim, as pessoas conseguem como que sublimar tudo isso para continuarem a viver. Parecem externamente se acostumarem com a situação.
A linguagem, difícil de se analisar por se tratar de uma tradução. Pode-se dizer, contudo, que, em português, é uma boa linguagem, talvez até tradicional demais. É realista, mas de um realismo muitas vezes lírico, poético.
Um grande abraço e obrigado pelo seu comentário, como sempre tão instigante.
Jayme
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